Seca obriga moradores do RN a gastar Bolsa Família em água potável
G1 visitou nove municípios que estão em 'colapso', sem água nas torneiras.
Moradores relatam sofrimento e temem ficar doentes ao beber a água.
Moradores de Equador precisam fazer fila para conseguir água (Foto: Anderson Barbosa/G1)
O Rio Grande do Norte enfrenta a pior seca dos últimos 50 anos, com estiagem que já dura mais de um ano em diversos municípios. A falta de água mudou a rotina de milhares de famílias carentes do sertão, que são obrigadas a gastar boa parte do dinheiro que recebem de programas sociais – como o Bolsa Família – para poder beber, cozinhar e tomar banho.Durante três dias, o G1 percorreu mais de 1.200 quilômetros de estradas de terra e asfalto para ver quais são as dificuldades enfrentadas pelos moradores de Ipueira, Carnaúba dos Dantas, Equador, São José do Seridó, Antônio Martins, Água Nova, João Dias, Pilões e São Francisco do Oeste. Além da morte de animais e da destruição de lavouras, foi possível ver que os moradores travam uma luta diária pela própria sobrevivência, em busca de água potável.
No domingo (1°), o "Fantástico" mostrou como funcionam os programas que combatem a seca no Nordeste com caminhões-pipa. O principal responsável pela distribuição no semiárido do Brasil é o Exército, que paga até R$ 15 mil mensais para cada um dos 6 mil pipeiros responsáveis por levar água a 835 cidades, em nove estados, para quase 4 milhões de pessoas. Só em 2013, o governo já gastou mais de meio bilhão de reais no programa. Em dois meses de investigação, a reportagem encontrou tanques imundos, água contaminada e entregas que nunca foram feitas.
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Com o nível dos reservatórios muito baixos, a companhia estadual não consegue distribuir água em todas as cidades. Por conta disso, suspendeu a cobrança das contas em nove municípios, que dependem da chegada de caminhões-pipa. "Ninguém mais dá bom dia na rua. Primeiro a gente pergunta se tem água na caixa", disse a dona de casa Marina Medeiros, de 40 anos. Moradora de Ipueira, na região Seridó, ela busca água todas as manhãs nas caixas comunitárias abastecidas pelos caminhões.
A produtora de vendas Robéria Danielle Dantas, de 27 anos, mora em Carnaúba dos Dantas e conta que teve que readaptar a vida por conta da escassez de água. A maior mudança, segunda ela, é não ter conforto para tomar banho. "Não sei mais o que é tomar um banho decente. Há dois anos, só tomo banho de cuia."
Robéria Danielle Dantas há dois anos só toma
banho de cuia (Foto: Anderson Barbosa/G1)
banho de cuia (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Ana Santana acorda cedo e faz várias viagens até o
chafariz atrás de água (Foto: Anderson Barbosa/G1)
chafariz atrás de água (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Aguá servida para os moradores de Carnaúba é
verde e cheira mal (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Nas cidades visitadas, o G1 ouviu várias histórias de sofrimento por conta da seca. Brigas e ameaças na disputa por um lugar na fila dos chafarizes públicos e das caixas d'água comunitárias já viraram casos de polícia. Sem água nas torneiras, o pouco líquido que restou em poços e barragens é barrento e tem mau cheiro, impróprio para o consumo humano. Quem se arrisca e bebe, adoece facilmente. Os mais frágeis, como crianças e idosos, sofrem com diarreia e desidratação.verde e cheira mal (Foto: Anderson Barbosa/G1)
O comércio de água é o único beneficiado. Há relatos de quem largou a profissão para vender galões e barris a moradores. O vaivém de caminhões e motocicletas adaptadas para transportar água já faz parte da paisagem há quase um ano. Quem tem cisterna também precisa gastar dinheiro para encher os reservatórios. Quem não tem improvisa com baldes e barris. Vasilhas decoram as calçadas.
Carnaúba dos Dantas
A primeira parada do G1 foi em Carnaúba dos Dantas. A cidade fica na região Seridó, a 220 km de Natal. No caminho, a movimentação de carros-pipa já deu sinais do quanto a ajuda é necessária. A maioria dos veículos faz parte da Operação Pipa, programa de responsabilidade do Exército brasileiro.
Apesar de não tomar banho de chuveiro há dois anos, Robéria não é beneficiada pela Operação Pipa. Ela diz que a água trazida pelos militares não é boa para o consumo e que por isso prefere ligar para os entregadores e comprar a água que usa para beber, tomar banho e fazer as atividades domésticas, como lavar roupa, cuidar da limpeza da casa e cozinhar.
Esse não é o caso da dona de casa Ana Santana, de 45 anos. Mãe de três filhos, ela acorda cedo e faz várias viagens empurrando um carrinho de madeira até o chafariz público da cidade para pegar água. "Essa água verde que eu pego é fedida e não presta pra beber. Mesmo assim, é com ela que eu cozinho, dou banho nos meninos e preparo a nossa comida", relatou.
Segundo o coronel Marcelo Pellense, coordenador do programa no Rio Grande do Norte, em 113 municípios do estado caminhões foram contratados para levar água aos desassistidos pela seca. "Toda a água que o Exército fornece é potável, vem da própria Caern e é apropriada para o consumo. Nas cidades em que a Caern não tem de onde tirar água, são os municípios que indicam os mananciais. A cada 30 dias, as prefeituras precisam nos enviar relatórios de análise da qualidade da água", ressaltou o oficial.
De acordo com o coronel Josenildo Acioli, coordenador da Defesa Civil no Rio Grande do Norte, o estado mantém caminhões-pipa em 24 municípios que não fazem parte da lista dos 113 que já são assistidos pelo Exército. Segundo ele, a água oferecida à população também é apropriada para o consumo.
Ainda de acordo com Acioli, a água que é fornecida gratuitamente para essas 24 cidades (incluindo João Dias, Pilões e São Francisco do Oeste) pode acabar. Para evitar que isso ocorra – uma vez que só há recursos para garantir o fornecimento até o fim de janeiro de 2014 – o órgão está apelando ao governo federal.
"Protocolamos em outubro, junto à Secretaria Nacional da Defesa Social, um pedido de mais recursos. Ainda não tivemos resposta, mas precisamos prorrogar nosso programa de atendimento por pelo menos mais seis meses. Para isso, são necessários R$ 9,2 milhões", afirmou Acioli.
'Tive dor de barriga, diarreia'
Ana Santana contou que certa vez, sem dinheiro para comprar água potável, precisou beber a água que apanhou no chafariz. "Tive dor de barriga, diarreia. Fui bater no posto de saúde. Lá em casa, todo mundo adoeceu", disse a dona de casa.
Aldo Dantas deixou o trabalho de marceneiro para
fazer entrega de água (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Apesar da situação caótica, há quem lucre com a falta d'água. Aldo Dantas, de 35 anos, trabalha desde a adolescência como marceneiro. Porém, faz dois anos que trocou de profissão. "Com madeira, eu trabalhava para os outros e ganhava um salário mínimo. Com os descontos, ficava com uns R$ 500 para passar o mês. Agora, como entregador de água, sou meu próprio patrão e ganho R$ 800 livres de desconto", revelou.fazer entrega de água (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Aldo diz que não faltam clientes na cidade. O único gasto é abastecer sua motocicleta. Ao veículo, ele adaptou um reboque para puxar uma carroça que leva um galão com 240 litros de água, que ele diz ser de Natal e comprado de um atravessador. "É boa, quase mineral. Se a entrega for aqui na cidade mesmo, custa R$ 18. Se for na zona rural, mais afastada, cobro R$ 23", contou.
Ipueira
Em Ipueira, cidade que também fica no Seridó potiguar, os problemas com a falta d'água se repetem. O colapso no abastecimento levou a prefeitura a instituir um "cartão vale água". Com ele, cada residência tem direito a 120 litros de água potável por semana. O controle passou a vigorar há três meses e já virou caso de polícia. Osawa Brasil, servidor público que controla a distribuição de água potável, já foi ameaçado de levar uma surra por um morador.
Ipueira está com colapso no abastecimento desde agosto. A Caern diz que o abastecimento só será normalizado quando tiver capacidade de retirar água das barragens da região.
São José do Seridó
Quatro quilômetros é a distância que separa a população de São José do Seridó do sonho de acabar com a constante falta d'água. A tubulação do novo sistema adutor da cidade era para ter sido entregue no dia 19 de novembro do ano passado, mas um erro no projeto atrasou a conclusão da obra. Segundo a Caern, o novo sistema de captação, adução, tratamento e reservação do sistema de abastecimento de São José deve ser concluído em setembro de 2014.
Placa na entrada da cidade mostra que obra tinha
que estar concluída (Foto: Anderson Barbosa/G1)
A Caern explicou ao G1 que, durante a execução do projeto, a empresa contratada observou que a geologia do solo, bastante rochoso, impedia o andamento do plano original. Por isso, em setembro, a obra foi suspensa para uma readequação. As modificações foram enviadas à Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pela análise e liberação dos recursos, em novembro do ano passado.que estar concluída (Foto: Anderson Barbosa/G1)
Essa readequação vai custar R$ 400 mil a mais na obra. "Originalmente, os recursos tinham a ordem de R$ 2,7 milhões, e com a readequação foram para R$ 3,1 milhões, tendo sido executado R$ 1 milhão na construção de uma adutora por gravidade, que está hoje 70% concluída. O dinheiro a ser liberado será usado para finalizar essa adutora e, ainda, a execução de dois reservatórios elevados, uma Estação de Tratamento de Esgotos e uma adutora por recalque", diz a Caern em nota emitida por sua assessoria de imprensa.
Adutoras, barragens, cisternas e dessalinizadores
A assessoria de comunicação do governo do estado informou que a governadora Rosalba Ciarlini preside o Comitê Gestor de Avaliação e de Combate à Seca, que semanalmente se reúne para monitorar a execução das ações estratégicas realizadas com o apoio das secretarias estaduais, do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil. Dentro das ações, está a construção de mais de 700 quilômetros de adutoras, 3.400 barragens submersas e 17 mil cisternas, além da recuperação de 60 dessalinizadores e da perfuração de mais de 200 poços em vários municípios.
A comunicação do governo citou como exemplo um incremento de mais 22 quilômetros de adutora. A perfuração de outros 12 poços no Sistema Adutor Monsenhor Expedito deve passar a fornecer, nos próximos meses, uma oferta de 750 metros cúbicos a mais de água por hora, um aumento de aproximadamente 50% na produção, que deverá beneficiar mais de 240 mil pessoas em 30 municípios da região central e agreste do Rio Grande do Norte.
Quando entrar em operação, a adutora Monsenhor Expedito deve fornecer 2.200 metros cúbicos de água por hora, dobrando sua capacidade. A previsão é que neste mês a obra inicie sua fase de testes e seja inaugurada em janeiro de 2014.
No dia 28 de novembro, foi publicada no Diário Oficial da União a transferência de R$ 13,5 milhões do governo federal para o estado poder contratar obras da adutora de engate rápido em Pau dos Ferros, na região oeste. Com a publicação, o governo afirmou que será iniciado o processo de contratação da empresa que vai realizar as obras da adutora em caráter emergencial. "Os recursos serão liberados pelo Ministério da Integração, através da Defesa Civil Nacional, para uma conta específica da Defesa Civil Estadual, que é vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania (Sejuc)", diz a assessoria do Caern.
"Pelo projeto, a captação da água será na cidade de Itaú, a partir da adutora do alto oeste, do subsistema Santa Cruz-Apodi. A adutora, que terá 43 quilômetros de extensão, levará água até o município de Pau dos Ferros, beneficiando diretamente 28 mil pessoas residentes na cidade e indiretamente 200 mil pessoas dos municípios vizinhos, que também usufruem da água de Pau dos Ferros", acrescentou a assessoria.
Ozawa Brasil mostra dessalinizador que a prefeitura de Ipueira ganhou para tratar a água que é servida à população (Foto: Anderson Barbosa/G1)